Minne vapautuvat varanne? // english version soon //
por Josué Mattos
[texto sobre a exposição Planos em Secção que integrou a Temporada de projetos 2014 do Paço das Artes]
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Varanne, em finlandês, significa algo como atenção. A informação hipotética faz menção à natureza do dicionário por meio do qual a tradução para o português foi obtida, um destes motores ágeis de pesquisa na internet, cuja funcionalidade é a de identificar idiomas estrangeiros e de traduzi-los subitamente. O que acaba por aumentar, em muitos casos, o teor disfuncional do exercício no qual a tradução está envolvida. Ou seja, embora a ferramenta seja prática, útil e servil, ela não perde em confundir, em atenuar diferenças, em quebrar regras de sintaxe. Ou mesmo em destoar o sentido das coisas. O que se aproxima, em parte, das tarjas brancas e pretas presentes em várias frases e rostos estampados em jornais, com as quais o artista Victor Leguy destoa as informações contidas em seu projeto Planos em secção (2014). Ademais, incompreensíveis àqueles que não dominam o idioma, os periódicos datados da primeira metade do século XX e coletados na Finlândia em 2013 são restos esparsos de uma história dúbia, de atrocidades cometidas a figuras anônimas, que enquadram o país em situações e lamúrias adversas, típicas de relatos do pós-Segunda Guerra. Controlar o teor dessas informações faz alusão à força repressora de certas mídias de massa, ou aos motores de pesquisa da internet, que definem, em grande parte o que chega ao grande público. Por isso, identificar cada personagem dessa história também seria tarefa hercúlea. É que, ao eliminar parte da informação contida na frase, ou tachando a face das pessoas com matéria branca (para as mulheres) ou negra (para os homens), a produção do artista não deixa de anunciar que o veredito não é o interesse central. Afirma, também, que, neste arquivo segmentado, as figuras produzem questionamentos sobre o modo como suas vidas são estrategicamente confinadas na história. É um arquivo que estende seu centro de interesse para relatos futuros. Como se, neste grande arquivo anônimo, disparatado — constituído por resquícios de verdade ou por destroços simbólicos da ideia de sujeito — e lugar de memórias confusas e assuntos remotos, pudessem ser anunciadas muitas das zonas de tensão que abarrotam o presente. O cenário da barbárie perdura de modo a permitir que as gerações presente e futura elevem suas fundações humanistas sobre o esfacelamento do sujeito, sem perceber que muitos dos valores do presente não são outra coisa senão indescritíveis perversidades.
Para além dessas considerações nebulosas, há indicações dos preços gastos em compras de materiais utilizados para a fabricação de algumas obras, marcados nas paredes e ao lado de objetos recebidos durante a exposição por pessoas com quem o artista conviveu na Finlândia. Ao elaborar este corpo de informações e de imagens que se estruturam ao lado de assuntos mortos, Planos em secção (2014) retorna à história de maneira entrecortada. O que faz com que o artista mostre algum tipo de reflexão sobre o custeio e a manutenção fictícias de cada imagem, texto, indicação geográfica e mesmo de informações menos relevantes, todas partes integrantes de uma precária engrenagem. Assim é que um livro encontrado sem impressões evoca o erro, e se vê revertido em insistência, em algo que tenta atravessar a tal precariedade com sua fugaz presença. Intitulada Sastamaala (2013-2014), a obra foi apresentada em uma caixa de madeira para dentro da qual pendia uma luz mantida por um fio preso no teto. Olhar para um livro que sempre negou suas palavras evoca histórias mal contadas e narrativas imprecisas vigentes pelos confins de histórias locais, que acabam por definir outras tantas. Ademais, a cidade onde o artista encontrou o livro não existia até 2009. Seu nome é resultado da fusão de outras três e foi emprestado para o artista para nomear o livro que nunca existiu como tal, mas que permaneceu como elemento do erro de série. As cidades que se fundiram se chamavam Aetsa, Moujijarvi e Vammala. Em 2013, outro povoado se uniu a Sastamaala. Trata-se dos kikoinen. Desse modo, quando Sastamaala dá nome ao livro que ganhou espaço no campo da arte pela via do erro, do equívoco e do apagamento, uma leitura possível que perpassa esse e outros trabalhos da série é a que considera as consequências decorrentes do ato de proliferar, na vida cotidiana, uma verdade infundada. E isso leva à questão de saber se haveria uma reação também infundada ou incompreensível para ações da mesma natureza. Qualquer que seja a resposta que provavelmente conduz o sujeito a conviver de outro modo com tantas aparentes patifarias do mundo, o que parece haver por trás de todas as informações contidas, inacessíveis e possivelmente desnecessárias em Planos em secção (2014) é o fato de que o não saber não favorece àqueles privados de conviver com os valores da linguagem. Daí a potência da projeção e do desenho embaralhando a percepção ao fundo da sala da instalação. Ignorar as particularidades do desenho e da projeção não alteraria suas especificidades. Ou, ainda: a aceitação deliberada de se ausentar dos modos que regem as forças motrizes do mundo não exclui o sujeito de conviver com os fantasmas da história. O desconhecido é mais presente do que se pretende.
Outro fato: ao transitarem por destinos incertos, as obras anunciam que há valor em realizar viagens sem rumo. Do mesmo modo que a perda de rumo no mundo pode ser um modo de encontrar em becos sem saída condições imperceptíveis que restauram a atrofia e tornam possível a emancipação dos desejos. Porque sempre há saída de um beco, mesmo que esta seja a própria entrada. Por isso é que tomar conhecimento de parte do itinerário da viagem pode evitar vê-la encerrada fatalmente em uma pirambeira. E é, em parte, sobre a ideia de viagem que a instalação trata, ela que foi produzida no equidistante gozo pelo desconhecido, que se encontra na visibilidade construída pelas diferenças da vizinhança.
“Onde são liberados atenção?”, eis a frase que intitula o artigo de uma das folhas do jornal iluminado precariamente na instalação, avizinhada por outras tantas, umas ao lado das outras. A frase aparece em sua versão original no topo deste texto e o intitula, um pouco para pensar sobre o que pode um texto como este, resultado de muito pouca compreensão sobre as questões que ainda ecoam sobre o conjunto de obras, por serem vastas, complexas e vistas no calor do tempo em que a obra é produzida. Quando é que uma obra que trata de anacronismo e de situações experimentadas no outro lado do mundo pode ser considerada para imaginar as desapropriações, a inoperância e o descaso mascarados, todos caminhando por aí feito ratos que circulam apressadamente de um canto para o outro, aproveitando-se do descuido de olhos desatentos?
Com um exercício de tradução minimamente apurado, a frase passaria a significar algo como “atenção: onde estão os liberados?” De antemão, ela sugere questionar se em algum momento existiu liberdade para um foragido. Um sujeito que precisou desaparecer pode ser considerado livre? Quando ele segue suas próprias leis para fugir da norma escravista, criadas, por vezes, no calor do delírio, em que condição social ele é inserido? Ao eliminar a referência à figura, tachando seu rosto ou eliminando a palavra de quem teria sido liberado, o artista não subtrai da frase interrogativa seu estado de aprisionamento. Isso porque a fuga sempre foi um aprisionamento, algo que faz o sujeito se interrogar onde foi que ele se meteu. Seja em um lugar estrelado ou em um campo de extermínio, ninguém se esconde facilmente de si mesmo, e esses planos também parecem coexistir em cada figura, silhueta, sombra e objeto da instalação. Apagados, tachados, sombrios ou projetados, eles nunca escapam àquilo que são e aos seus próprios desejos. Outro ponto a considerar é o valor da tarja, pelo fato de ela se tornar o gerúndio que prolonga as complexidades da ausência e da pausa na frase. Algo semelhante acontece desde quando Cildo Meireles buscou circular a questão sobre a origem do assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Embora a frase interrogativa mantivesse, inclusive, o nome da vítima exterminada durante o regime ditatorial vigente no país, o que perdura é o desejo de fazer menção à pluralidade de casos nos quais os Herzogs percebem a atrocidade e a castração absurda presentes em meio a uma quantidade considerável de propostas humanistas, que velam assumidamente o lugar da barbárie. Por isso a frase ecoa no gerúndio, perseguindo todos os que permanecem sendo mortos, mas que a comunicação de massa, ditatorial e sagaz em eclodir informações menos relevantes, acaba por mostrar um mar de rosas onde há barbárie e alienação. Assim, diante da ilegibilidade que se produz no delírio esfacelado, não resta outra coisa senão o envolvimento com o espaço do simbólico, distribuído em planos e em alternativas para percepções contundentes sobre o mundo atual. Do contrário, o sujeito contemporâneo não seria diferente desses úteis e servis programas de tradução que comumente destoam ou impedem o aprofundamento na complexidade da versão original.
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